Toni C. O hip-hop e os livros de história do futuro

"Da licença aqui que eu tô podendo!" É o que se lê no diário de bordo. O mesmo que se gritasse: "Terra a vistaaaaaaaa!" depois de uma noite de tempestade em alto mar. O grito vem do alto do mastro, com a luneta na mão, agitando o convês desse naviozão chamado hip-hop.


Cartaz (lambe-lambe) do encontro da Nação, foto Jucka Anchieta (
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Estará nos livros de história do futuro:

“As 9 horas da manhã desse 29.
Patrícios, saibam vosmecê.
Um exercito de todos os cantos do país.
Portando fardamento estilozo, ignorando a chuva fina.
Sob o mirante Niemyer, para ver sua cultura soberana.
Rumavam em fila beirando a praia do Gonzaguinha a marchar.
Ocuparam um monte, chamado ilha Pochat.”

Assim me parece a abertura do Terceiro Encontro Nacional da Nação Hip-Hop Brasil. Descobridor dos 7 mares passaria mal ao descobrir os 4 elementos e as mais de 500 cabeças. Juntos, no Ilha Pochat Club, com vóz e vez, sem se deixar intimidar pelas autoridades ali presentes. Secretários de cultura, vereadores, a imprensa, deputados e até o prefeito da cidade estavam lá, não para impedir, mas para prestigiar o evento.


Protocolo oficial, cerimonial... Nada disso, deixa isso cum nois! No lugar do hino, break beat. No lugar da mão no peito, giros no chão. No lugar da bandeira, graffite. No lugar de discursos longos, papo reto.

Nelson Triunfo quando chamado ao palco arrancou aplausos acalorados, a mesa ficou pequena, Douglas, Bonga, Anderson 4P, Raisuli, ..., vixi, mil trutas… Eva de Sumare arrebentou: "Ser mulher não é fácil, negra de periferia envolvida com o samba com o rap então… Agora ser tudo isto e se tornar vereadora, não é moleza!"

Aqui os capitães não são de areia. No timão, conduzindo o navio o santista Aliado G: “O Ilha Pochat Club, é um simbolo da elite paulistana, que realizam tradicionais bailes de carnaval aqui.” Malena, rapper argentina do grupo feminine Actitud Maria Marta representou as delegações internacionais. Falou que no Brasil existe o hip-hop mais politizado e organizado do mundo e propôs a criação de uma rede latino americana de hip-hop.

A proposta foi posta em prática no próprio encontro com a participação do Chile, Venezuela e até do Canadá. Durante a apresentação do Actitude no palco com uma jam de mulheres rappers brasileiras e Aliado G: “Primeiramente bom dia pra nois! A selva é de pedra e os leões são feróz. É um por dia, é o sol brilha. Vem colorir América Latina.”

Eu acompanhava tudo lá da areia, de frente ao palco, junto ao mar de gente. A minha esquerda o marzão e no horizonte em pleno por do sol um luxuoso transatlântico saia em cruzeiro rumo à águas profundas. Como um flash me lembrei da encenação da Vila de São Vicente que havia assistido a alguns dias atrás. A primeira cidade do país. Ali mesmo naquela praia um povo, os verdadeiros brasileiros, cantando e dançando com suas pinturas, linguagens, vestimentas. Até que as caravelas chegaram e acabou a festa. Hoje, onde se iniciou a Nação brasileira é o local escolhido pela Nação Hip-Hop Brasil para comemorar os seus cinco anos de existencia. A caravela é o simbolo do encontro e nestas mesmas areias há um povo com suas danças, músicas, pinturas, trajes e linguagem própria. Só que dessa vez os incomodados tem que pegar os grandes navios e zarpar.

"Areia de praia não sustenta prego" VDA

Há uma velha e machista lenda que compara baile de rap com navio pirata. Dentro só tem homens e canhão, além da esposa do capitão (as minas dos caras que cantam). Em São Vicente as minas participaram desde a construção do projeto, com um espaço que homenageava a guerreira Anastácia. Além de suas belas participações nas oficinas, no graffite, na dança, discotecagem e nas rimas. E mesmo na hora do almoço quando todos os debates se encerravam, as guerreiras continuavam debatendo, mostrando que lugar de mulher é também no hip-hop e onde mais elas quiserem.

Tem quem enjoe em alto mar, mas quem é do mar não enjoa.

Você já se perguntou, a quem interessa o hip-hop à deriva? Este encontro é uma espécie de farol, que foi construido e ficará cravado no litoral brasileiro, sinalizando para os naufragos e viajantes perdidos.

Acha exageiro? Que nada mudou?

Eu ví, debates que juntaram gente de todos os cantos. Um deles discutia a violência, a juventude encarcerada. Era uma roda com mais de 200 pessoas. Na mesa Renan do Grupo Inquerito, Douglas do Realidade Cruel, DBS, Panikinho e enquanto Mano Oxi dava seu testemunho da vida na quebrada antes do rap. Um burburinho se formou com a chegada dum delegado de polícia que se dirigiu ao locutor. Quando Oxi o avistou, anúnciou no microfone e pediu que se sentasse para participar também do debate, “Um delegado que coloca dentro da cadeia gente como Paulo Maluf e Daniel Dantas, tem que estar aqui com nois” assim Oxi recepcionou Protógenes Queiroz.

Vamos invadir sua praia
Democratizar a areia, o mar, a praia, foram os méritos deste encontro. Que também expandiu a cultura da periferia no litoral.

Posso relatar neste diário de bordo muitas situações e diversas abordagens dos mais de mil participantes dos quarto dias do encontro. Começo falando de uma pessoa. Debatiamos durante o encontro com a direção da entidade. E os manos perguntavam:
- Cade o Beto Teoria?

Ele estava ausente daquela reunião por que se participasse não aconteceriam os debates, as oficinas, o transporte dos grupos e outras coisas que o mano estava pilotando.

No lançamento do livro Hip-Hop a Lapis - Literatura do Oprimido, com a presença de muitos dos 60 escritores como DJ Saddam que veio do Rio de Janeiro, Maria Teresa da Bahia, White Jay e Mano Oxi do Rio Grande do Sul, Hot Black de Sergipe, eu e DBS de Caracas, André Gomes e Aliado G do interior de São Paulo, Pandora e Sagáz do Espírito Santo, Thiago Váz de Ribeirão Pires, Haroldo de São Paulo, Kimzak de Santa Catarina e até do Ministério da Cultura, Célio Turino que prefáciou o livro veio de Brasília para a atividade literária…

…mas cadê o Beto Teoria?

Correndo como sempre, nos bastidores para tudo dar certo. Ah não! Manda chamar o sindico, fala para ele parar pelo menos um minuto e vir aqui.

Beto chegou para dar um salve e não fez feio:

- Seguinte. Não é necessário eu estar aparecendo todo o tempo. Estou aqui correndo, para os manos cantar, tocar, pintar, dançar, debater... Apesar de cantar, não faço questão de subir no palco, não faço questão de aparecer na foto. Por que quem não aparece, também é importante. O fotografo não aparece, mas sem ele não tem foto. – Assim ensinou Beto Prática, ou digo, Teoria.

Agora vou falar dos outros 999 participantes, e o público dos shows que somaram mais de 10 mil pessoas em quarto dias. Fotografos aqui neste meu diário, mas essenciais para a fotografia. Minas e manos que enchiam os grupos de debates, as oficinas, que aconteciam tudo alí, a poucos metros da praia naquele solzão e sensação termica de 40 graus. Ninguem tinha bola de ferro no pé, não eram obrigados a ficarem alí, não iam caminhar na prancha se fossem se dar um mergulho. Mas preferiram as idéias quentes do encontro, preferiram dar um mergulho na história, oh que mil grau!

No encerramento do evento Japão do grupo brasiliense Viela 17 falou emocionado: "Essa é a coisa mais linda que eu já ví."

A Lua cheia de sí, curiosa e linda veio espiar o que estes muleques aprontavam. Nos brindou na noite do último dia enquanto MV Bill se apresentava. E continua a nos acompanhar.

Agora só nos resta, içar âncora.